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Futebol arte, um trabalho mental

Posted on 22 de julho de 202324 de julho de 2023

Antes da prática, a teoria, e para compreender uma boa teoria é preciso ter um bom cérebro. Alguns cérebros são abençoados com boas pernas e conseguem praticar as jogadas teoricamente “perfeitas”, mas a grande maioria apenas observa atentamente o grande plano de um técnico de futebol e tenta executar o que é pedido.

Grandes futebolistas são diferentes de grandes jogadores. Futebolistas podem ser forjados com avanços científicos, psicológicos, técnicos e muito treino para que os corpos suportem trocas de movimento repentinas. Porém, grandes jogadores são raros e ainda não se descobriu como fabricá-los.

Esse é o grande lamento do brasileiro quando enxerga alguns grandes jogadores que não são dotados de grande capacidade física. E parece que os últimos lampejos do Camisa 10 têm surgido em corpos mais frágeis, comportamentos rebeldes e inconstantes, e uma barriga de cerveja que não aguenta dois jogos seguidos. No Brasil, talvez, estejamos assistindo aos últimos momentos desse articulador clássico de jogadas com as atuações de Paulo Henrique Ganso, jogando pelo Fluminense. Ainda assim, ele não nasceu com bons joelhos. 

Um técnico trabalha para que suas jogadas sejam colocadas em prática, mas sem um cérebro para procurar os espaços e compreender as possibilidades para o time avançar, não há como executá-las dentro de campo. Por mais que inúmeras previsões e possibilidades de um jogo sejam feitas, é preciso que um jogador (melhor se fossem mais) as enxergue. Ganso enxerga o que ninguém enxerga, e os próprios colegas de trabalho pedem para ele ter paciência. “Infelizmente, a gente não consegue enxergar como ele.”

São brechas improváveis, cortes que quebram toda a estrutura tática do adversário e para fazer isso não basta ter o corpo atlético. É preciso ter um cérebro desenvolvido. Ronaldinho Gaúcho nos ofereceu, talvez, o melhor de uma boa relação entre cérebro e corpo. Além de toda a técnica, ele tinha o toque intuitivo de um artista. 

Em muitos momentos da história, artistas entregavam sabedoria para as pessoas. Picasso, Van Gogh, Beethoven. Comparar tais gênios com jogadores de futebol pode parecer desproporcional, provavelmente seja, mas não se trata de um absurdo.

A arte é popular em formatos diferentes em séculos diferentes. Um dos fatores é a tecnologia disponível no período. Na Renascença, não havia fotografias e o artista que desenvolvia a capacidade de construir quadros realistas representava o suprassumo da mentalidade humana. Para isso, naquele tempo, era preciso compreender como o olho humano percebia o mundo, como as cores eram refletidas em diferentes plataformas. Era preciso conhecer a ciência disponível de forma ampla. Um artista representava a nata da compreensão sobre o mundo. Da mesma forma, músicos, poetas e filósofos em seus devidos tempos entregaram a sua vida para desvendar os mistérios que circundam o instante de cada época.

Como certa vez disse Albert Einstein: “A imaginação é mais importante que o conhecimento, porque o conhecimento é limitado, ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro.”

A poesia é o traço do artista e ela não é o resultado de um cálculo matemático. Ela não serve para ser vendida, pois não oferece resultados diretos e concretos. A poesia, assim como qualquer arte, serve como veículo de informações que ainda não foram descobertas pela razão. A capacidade de compreender a beleza das coisas, a poesia da vida, remete aos sentimentos mais elevados do ser humano e torna a vida muito mais complexa e atraente. Jogadores e equipes vitoriosas, na linha da história do futebol, são menores do que jogadores e equipes artísticas. A poesia no futebol também fala ao público. Em essência, a poesia é o resultado de um conhecimento que passou por todas as etapas de aprendizagem, sacrificou seu destino para percorrer o caminho e agora se encontra livre para criar o que o coração manda. A poesia não se esforça para sair do poeta, é o poeta que se esforça para ter condições de expressá-la. O drible não é um cálculo, o drible é um deixar-se levar pelo momento. O drible é uma das essências do jogo. O drible é uma espécie de arte feita pelos jogadores. 

Para grande parte dos pensadores do futebol, essa arte foi subjugada pela vitória. Clubes precisam de investimento e esse investimento surge com exposição. Exposição se conquista vencendo. Jogar bonito e convencer é um valor agregado que poucos podem pagar. Mas, quando observamos as listas dos melhores times que já existiram, claro que há exceções, nem todos são vencedores. Temos os maiores exemplos na Holanda de 1974 e no Brasil de 1982, que mudaram a compreensão do esporte. Times que entregaram poesia para o jogo, mas acima de tudo, proporcionaram um espetáculo de beleza para a sociedade repletos de significados.

O futebol é um esporte global e é um fenômeno do nosso momento. Observando a linha histórica e evolutiva da sociedade, iremos nos deparar com fenômenos sociais que, aparentemente, representavam mais as questões intelectuais do que o nosso futebol. Basta observar alguns dados sobre o que é preciso para que essa indústria exista, o que faz um jogador ser bom, e toda a gama de influência (positiva e negativa) que o futebol exerce, e poderemos perceber um fenômeno cultural complexo, profundo, e o mínimo que podemos dizer é que “homens mais sábios do que nós tiveram muito mais cautela para falar sobre isso.”

Voltando ao nosso Ganso e desejando que ele seja multiplicado em nossas categorias de base: Como se faz um jogador que pensa e considera a importância de sua profissão para além das pernas?

Lembro de uma transmissão da Copa do Mundo de 2014 em que o narrador observou que o volante titular japonês havia escrito um livro sobre produtividade que foi um best-seller no Japão. Por melhor que nossos jogadores sejam, ninguém ainda escreveu nada por aqui, e eles seguem, em sua maioria, perseguindo dinheiro rápido, tatuagens e divulgando uma linguagem com gírias e pouca articulação. Não é preciso que nossos jogadores tenham a mesma ambição dos japoneses, mas bastaria, talvez, que considerassem a importância da profissão, tal qual outros artistas como Zico, Sócrates, Pelé… já consideravam em outros tempos. É preciso um pouco de trabalho mental para chegar nesse lugar e produzir mais Gansos e Ronaldos. É preciso mais inventividade para incluir o talento mais profundo que um ser humano possa produzir dentro de uma indústria que precisa vencer.

Talvez, considerando que essa máquina fabrique mais pessoas comuns do que as que conseguem ingressar na profissão do futebol, sem querer teríamos mais camisas 10 trabalhando em todas as áreas, ao invés de lamentar que o nosso único camisa 10 tenha nascido com joelhos fracos, ou, pior, seja o único.

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