“…podemos ficar cegos para o óbvio, e também somos cegos para nossa própria cegueira.”
Daniel Kahneman
Circunstâncias de guerra
O percurso para encontrar e construir uma personalidade sólida e verdadeira possui, inexoravelmente, inimigos e obstáculos. É a guerra, e é assim mesmo. Dizem que os piores vilões da primeira guerra, percepção que foi registrada em centenas de diários dos próprios soldados, não eram os inimigos que imprimiam ataques com armas de fogo, mas sim, as dificuldades que as trincheiras ofereciam: lama, fedor, insetos e ratos, fome, frio, saudade… A guerra é mais complexa do que podemos imaginar. Podemos nos escandalizar com o termo e imaginar que se trata de uma condição extrema e degradante da existência, mas se há inimigos, há uma guerra e se há uma guerra, há, também, as circunstâncias de guerra.
Por mais paradoxal que possa parecer, essas circunstâncias de guerra são o resultado direto de uma decisão: compriu com um objetivo. Quando se decide alguma coisa, qualquer coisa, os inimigos também decidem. Eles vão tentar nos impedir de alcançar o que desejamos. Dessa forma, dá para imaginar que quando não temos um objetivo, também não iremos enfrentar as dificuldades para alcançá-lo.
Objetivos são, em síntese, problemas que precisam ser resolvidos. Pense em qualquer coisa. Você gostaria de pegar um copo de água? Terá que levantar-se, utilizar energia física, pegar um copo, encontrar a água e servi-lo. Explicar esse simples ato já contemplaria algumas páginas. Pense então, numa dissertação sobre conquistar seus objetivos mais profundos. Muitos problemas precisarão ser resolvidos, obstáculos transpostos, muitos inimigos precisam ser combatidos.
Na guerra, existem as circunstâncias e os inimigos. Será necessário lidar com essas duas frentes para conquistar qualquer objetivo. Compreender o terreno e o que faz parte do momento e identificar quem e o que são os inimigos fazem parte da estratégia, tática e operação.
Confundir algumas circunstâncias com inimigos é o que geralmente acontece por conta da nossa percepção da realidade baseada em sentimentos básicos que estão na nossa programação humana. O gatilho mental mais raso, um instinto de proteção, é fugir da dor e procurar o prazer. Dessa forma caímos na cilada de imaginar que tudo que nos causa dor é ruim e tudo que nos dá prazer é bom. O que nos exige esforço pode tomar ares de inimigo, e o que nos proporciona prazer imediato e físico, pode parecer um aliado.
Mas o ser humano é mais complexo do que todos os animais juntos, e para nós existe uma jornada para que nos tornemos uma pessoa humana plena e consciente de si mesma. Não nascemos prontos nem mesmo temos certeza sobre o que podemos fazer de nossas vidas. A jornada, aos poucos, vai se descobrindo e indicando o caminho. Apesar de termos um padrão de comportamento, essa jornada é sempre individual e o destino do ser humano é incerto quando se caminha na terra. Somente quem percorre o caminho saberá os inimigos que se levantam para impedir a passagem, e como também temos um padrão de comportamento, alguns inimigos são padronizados e se levantam no caminho de qualquer caminhante. Nosso cérebro procura economizar energia, fugir da dor e viver no prazer e nessa pedra, muita gente já tropeçou.
Tenho um amigo muito talentoso que sofreu por anos com o vício em drogas pesadas. Após um longo tratamento, ele retornou para o convívio social com muita cautela e angústias. No processo para se livrar do vício, a sensação de força, uma força real, tomou conta, mas quando ele retornou para tentar viver como qualquer outro (um objetivo), precisou encarar a segunda parte da guerra. Ele havia lutado e vencido algumas batalhas contra o inimigo, mas nessa guerra longa, as circunstâncias de guerra são tão doloridas quanto os golpes certeiros do adversário. A guerra estava só começando e os piores obstáculos surgiram logo após as primeiras vitórias. Agora ele queria uma casa, mas precisou morar com os pais. Em pouco tempo, ele já estava imaginando que os pais eram os inimigos que impunham conflitos a ele. Ludibriado pelos próprios sentimentos os pais tornaram-se circunstanciais de guerra. A cada fim de dia, ele retornava com a sensação de derrota e revolta contra o que parecia ser um inimigo, mas eram aliados. E essa confusão é semeada pelo inimigo, uma espécie de contra-informação para desagrupar nossas tropas e degradar a autoridade dos generais. Os generais, no caso, é a fonte dos desejos e aspirações, uma parte interna, talvez espiritual que nos diz de forma sútil o que devemos fazer. Nessa confusão causada pelo inimigo acabamos mandando tropas para locais errados e perdendo o vigor na frente de batalha.
Os inimigos são como uma “Resistência” contra nossas aspirações mais profundas. Um mecanismo que no pensamento cristão é tratado como pecado. Tudo que nos tira do caminho pré-estabelecido é pecado. Tudo que nos tira do caminho é a Resistência. É como se existisse um centro de comando organizando ataques estratégicos contra nossas intenções. E esses ataques são sempre certeiros, sempre profundos e contundentes com novos métodos e roupagens. Quem dá o nome de Resistência é o escritor Steven Pressfield no livro A Guerra da Arte. Pressfield fala sobre um mecanismo que é tão antigo quanto os primeiros seres humanos e que, certamente, começou a atuar diante do dia em que o primeiro ser humano teve seu primeiro objetivo aqui na terra.
Por que comer? Por que não comer? E assim fomos expulsos do Paraíso.
Mesmo que a sua intenção seja sair do sistema financeiro e social para viver de forma isolada, uma série de situações adversas irão surgir para contrapor esse objetivo. A Resistência estará lá, atacando. Os adversários externos e internos são circunstâncias de guerra que jamais serão extintas do nosso convívio. A pressão emocional que familiares e amigos depositam em você, contas a pagar, a comida que precisamos ingerir diariamente, ser pai, ser mãe, cônjuges, senso de moralidade, etc.
Tudo de melhor que uma guerra pode oferecer está aí, mas se você imaginar que as pressões externas são terríveis, não desanime, os seus adversários internos são muito piores e mais sanguinários e é por meio deles que a confusão se instaura.
A guerra não é uma opção. A única opção é começar o dia lutando para vencer ou ser derrotado sem lutar.