A Holanda de 1974 ficou conhecida como Laranja Mecânica. Apesar de diversos relatos sobre doping, o que na época era menos investigado do que é hoje, essa seleção nunca deixou de ter destaque quando o assunto é desempenho tático, físico e artístico. A Holanda de 1974 representou o futebol total.
A estratégia era a ocupação de espaços, algo comum nos dias de hoje, porém, significou uma inovação para aquele momento. Além disso, os atletas atuavam pelo campo de acordo com a circunstância do jogo. Defensores também atacavam, atacantes também defendiam, e o meio-campo era um lugar onde todos cooperavam. A ideia era diminuir os espaços para que o adversário não conseguisse jogar na hora de atacar.
Alguns escritores e poetas da época afirmam que esse modo de jogar surgiu na Holanda devido às dificuldades com o terreno. O país encontra-se abaixo da linha do mar, e o povo convive com terrenos alagados, portanto, aproveitar bem os espaços é fundamental. Essa explicação, embora filosófica, está em sintonia com as evoluções do futebol: um momento de amadurecimento cultural.
Todas as mudanças dentro do futebol encontram eco nas características da sociedade. Um país é caracterizado pelo seu povo, e o povo é o resultado de uma série de convenções culturais que definem suas preferências, o que deve ou não ser condenado, o que deve ou não ser elevado aos lugares de glória. O futebol é um reflexo da sociedade onde ele estiver.
Nesse sentido, percebendo que o futebol está muito parecido em todos os países, com as funções dentro de campo tornando-se flexíveis e exigindo que os atletas tenham a capacidade de jogar em posições diferentes, também percebemos o mesmo movimento em todas as camadas sociais.
Em algum momento, há algumas décadas, o trabalho dentro da sociedade era rígido, estático e definido. Eram poucas opções profissionais e o caminho iniciado aos 18 anos de idade seria cumprido até a aposentadoria. Talvez isso seja uma boa explicação para o alcoolismo dos homens dessas décadas de 60 e 70, que no tédio e na impossibilidade de dar vazão a outros sentimentos, caiam na bebida como válvula de escape. A atividade profissional era restrita. Se você fosse um bancário, seria um bancário até o fim. Professor, vendedor, jornalista…
Neste momento cultural, o mundo parece estar num esquema parecido com o da Holanda de 1974. Estamos no esquema de Atividade Total. Tudo deve ser executado, tudo deve ser concretizado, sob pena de sermos eliminados da liga ou rebaixados para a Série B. talvez uma resposta contra a frustração de pais e mães que não tiveram opções diferentes em suas carreiras. Pais e mães que não viveram na sociedade líquida de Bauman.
Essa estratégia agressiva e aparentemente vivificante, da mesma forma que qualquer caminho a ser percorrido, oferece glória e cobra seu preço. A moeda em circulação no momento é a produtividade e ela só pode ser obtida com um aspecto tático que nem todos conseguem pagar: a disciplina.
A seleção holandesa de 1974 foi o resultado do trabalho realizado no Ajax durante os anos 70. A disciplina foi o ponto central. Havia regras para alimentação, preparação física, sono, treinos e jogos. Nada diferente do que vivemos hoje fora dos gramados. Mas os jogadores eram capazes de manter a pressão total por mais de uma hora, o que equivale a manter a pressão durante um dia inteiro de trabalho. A disciplina parece ser a solução.
No entanto, mesmo com a fama artística da equipe, restou o resquício do uso de drogas para melhorar o desempenho. Na vida fora dos gramados, os efeitos colaterais estão diretamente ligados à nossa vida pessoal. O nome de Cruyff ficou conhecido no mundo do futebol, porém, a maioria dos atletas, com exceção de profissionais do ramo, ficaram esquecidos. Uma equipe é formada por jogadores, a camisa do time e permanecerá na eternidade do esporte, mas os atletas entregaram grande parte da sua capacidade para apenas um momento de glória.
Drogas que aumentam a concentração e eliminam a fadiga, suplementos para criar massa muscular, entre tantas outras, já possuem diversas comprovações, embora nem sempre sejam amplamente divulgadas por algum motivo, de que possuem efeitos colaterais prejudiciais para o ser humano. A busca pela atividade total, pelo máximo desempenho em múltiplas atividades, cobra seu preço na disciplina. Mas a disciplina baseada em medicamentos não será glorificada pelo corpo.
A vida de qualquer pessoa é muito mais complexa do que a existência de uma equipe vencedora. Ainda não compreendemos completamente o que significa vencer como ser humano. Temos exemplos espalhados pelo mundo de pessoas humildes e pobres quando falamos em títulos e poder financeiro, porém, são gigantes no espírito. Da mesma forma, temos milionários vitoriosos nos “gramados” da vida, que são os verdadeiros pobres de coração e alma. A vitória na batalha da vida é maior do que a vitória nos gramados.
O futebol pode nos ensinar muitas coisas, mas o ser humano sempre será maior do que um campeonato.