Em teoria, seria muito fácil editar uma publicação, dizer que se expressou mal e assumir que cometeu um equívoco de informação. Mas, simplesmente, não é assim que a banda toca. Não me refiro a erros de gramática, que não estão mais na moda pois ninguém mais sabe gramática, nem a erros de digitação. O problema é o argumento e o modo como as pessoas se expressam. Muita gente não tem a intenção de ofender, às vezes nem tinha a intenção de dizer aquilo que o outro compreendeu. É mais fácil acertar em silêncio do que falando alguma coisa.
Pense na estrutura. Eu imagino algo, um sentimento, e preciso usar algumas palavras para expressá-lo. Quando esse pensamento é exposto, seja qual for o meio utilizado, ele passa por uma série de etapas. A outra pessoa precisa ouvir as palavras ditas, interpretá-las e raciocinar a respeito. Duas pessoas, facilmente, pensam coisas diferentes, até opostas, sobre a mesma palavra, e dessa forma caímos na impossibilidade de seguir uma conversa sem o debate acalorado e improdutivo.
Mas por quê ainda não temos a capacidade de assumir o equívoco, desculpar-se e seguir em frente, para frente? As teorias são muitas, mas, como costumamos pensar por aqui, podemos verificar algumas coisas dentro do futebol.
Para isso, seria necessário que uma nova estratégia estivesse em vigor, um outro tipo de comportamento se tornasse comum. Precisaríamos de uma nova cultura; por exemplo, seria preciso parar de simular faltas, de acusar golpes no rosto quando o adversário toca no ombro; seria preciso décadas de conscientização.
Nós consideramos que o futebol é a representação da cultura em que ele está inserido. Sempre que alguns aspectos do jogo são observados com atenção, é possível perceber parte da cultura de um povo, país ou grupo. Simular faltas, mentir sobre uma agressão que não ocorreu para ganhar vantagem em cima do adversário, para um brasileiro pode parecer apenas um ingredientes do jogo, mas sem dúvidas, é uma demonstração de caráter. Como poderíamos desculpar-nos e seguir em frente enquanto provocamos equívocos com farsas e encenações para ganhar vantagem.
Copa do Mundo de 2014
Na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, um clima estranho estava no ar. O Brasil nunca está livre de complicações políticas, seja por conta de denúncias, escândalos midiáticos, protestos ou suspeitas. Aqui, um escândalo não escandaliza ninguém. Porém, mesmo com muitas pessoas acreditando que o fato das Olimpíadas e a Copa do Mundo virem parar aqui por conta da concretização de um Brasil do futuro, era muita esmola e quando a esmola é demais, o santo que já é desconfiado, desconfia ainda mais. De qualquer forma, o brasileiro estava feliz com a Copa do Mundo em seu país.
Algumas desconfianças se comprovaram anos depois, muita coisa foi julgada, muito dinheiro envolvido muito desvio de verba nesse caminho. Tudo normal para um brasileiro comum. Mesmo assim, naquele momento da Copa, o que importava era a Seleção. A mídia já estava divulgando um slogan: “Seleção Guerreira”. Os jogadores entravam em campo em uma tradicional fila, cada jogador com a mão direita apoiada no ombro do jogador que estava à frente. Um resgate do significado de coesão que o time campeão de 1994 deixou. Em 94, eles entraram de mãos dadas, agora, dessa forma.
O primeiro jogo foi entre Brasil e Croácia. Os adversários organizados estavam jogando muito bem. Fortes e obedientes, os croatas acenderam um alerta sobre o nosso time. O Brasil, treinado por Luiz Felipe Scolari, o Felipão, parecia frágil e nervoso.
Além de tudo, havia um problema de natureza abstrata: o Brasil teria vendido o título da Copa de 98 em troca de ser sede em 2014. Naquela ocasião, Ronaldo Nazário, o maior craque da década de 90 e 2000, teria sofrido uma convulsão horas antes de entrar em campo. Foi um gatilho forte para a imaginação do brasileiro, acostumado com corrupção e carente de tramas literárias. Diziam que Ronaldo não teria aceitado vender o resultado e não queria entrar em campo, blá, blá, blá… O que ficou foi a desconfiança.
No Brasil, tudo é vaidade e corrupção.
Não é por acaso que as revistas de fofoca sobreviveram por anos aqui no Brasil. O sujeito comum é viciado em novidades, mesmo que seja uma invenção ou uma tagarelice. Poucas pessoas sentem a responsabilidade sobre as opiniões emitidas. De qualquer forma, verdade ou não, a tese era a seguinte: o Brasil havia entregado o jogo contra a França em 1998 para tornar-se sede da Copa do Mundo em 2014. Nos tornamos sede e o clima ficou estranho. Seria mesmo tudo uma farsa?
O Brasil, diferente de países como os Estados Unidos, não possui variedades esportivas bem estruturadas. Aqui, o futebol impera soberano. Não existe hóquei no gelo, basquete, futebol americano, ciclismo, automobilismo, beisebol, etc… Aqui, qualquer outra modalidade é insignificante se comparada ao tamanho, investimento e estrutura que o futebol possui. Além disso, o Brasil é o maior campeão de Copas e o maior exportador de jogadores do mundo. Para o brasileiro não é suficiente ver o seu time vencer, pois nós já dominamos o esporte, o brasileiro quer ver seu time vencer jogando bem, e nesse momento, jogar bem era fundamental para acabar com qualquer dúvida sobre a influência da corrupção sobre as nossas vitórias e derrotas.
O Maracanã estava lotado. O adversário, sem tradição alguma, naquele momento, nos empurrava. Nosso time não jogava bem até que Fred, o atacante, caiu na área. Pênalti. Ele foi tocado no ombro. Sim, um toque que certamente não mataria nem um mosquito. Mas ele caiu sentindo dores terríveis. A verdade é que não houve falta, não houve força, foi uma simulação que todos estão acostumados a enxergar dentro das principais ligas brasileiras. Os goleiros sofrem dores nas costelas quando defendem uma bola difícil. Os atacantes caem e se retorcem de dor por mais de dez metros sem nem mesmo terem sido tocados. Faz parte do esporte e é considerado uma simulação aceitável. Mesmo que nenhum torcedor sinta-se honrado por essa simulação, sabe-se que em casos de jogos difíceis, contra adversários tradicionais, ninguém reclama quando a “cera” é a favor.
Mas naquele momento a simulação do nosso atacante estava sendo assistida por mais de 1 bilhão de pessoas. Ele estava representando o país. Ele estava representando a cultura que praticamos por aqui.
Nesse dia, eu estava em um bar lotado. A euforia inicial da marcação do pênalti logo foi substituída por uma desilusão coletiva. Aquela desconfiança sobre 98 voltou a pairar no ar e foi como se enxergar em um espelho. Fred caiu e mostrou tudo o que não gostamos de ver. Temos potência, mas simulamos uma falta dentro da área para subtrair um adversário fraco e inexpressivo.
O jeitinho brasileiro não caiu bem. Foi como se aquela queda comprovasse o complô da copa de 1998 e tudo de mais ordinário que temos em nossa cultura. Soma-se a essa desconfiança o fato de que no Rio Grande do Sul, em 2005, um dos times da capital foi prejudicado por uma dessas articulações corruptas, com testemunhas e vários processos que ocorreram e desmascararam a compra do campeonato em favor de um esquema de apostas. Essa desconfiança sempre ocorreu no esporte por motivos reais e imaginários. Mas, por conta de uma tentativa social constante de erguer a cabeça e ter orgulho de si, nessa Copa, a de 2014, era importante erguer o caneco, mas acima de tudo, era importante erguer o caneco da dignidade brasileira.
A má impressão que aquele pênalti causou foi relatada, inclusive, pelo próprio Fred. Ninguém queria que o Brasil ganhasse por conta de um pênalti simulado, talvez nem mesmo se fosse coerente. Talvez, naquele instante, o brasileiro tenha sentido o sabor da própria cultura. Naquele momento, o brasileiro sentiu um olhar de fora observando a si mesmo e pudemos ler a mensagem que enviamos ao mundo. Na vida real, o jeitinho brasileiro não é motivo de orgulho. O futebol representa a vida real, muito bem.
A mensagem foi além dessa simulação. Nossos atletas se mostraram fracos, caindo, fingindo se machucar e chorando após a derrota. A Alemanha venceu a Copa e humilhou o Brasil. Ficamos com uma série de recados e muitos pontos para melhorar nossa forma de lidar com o mundo.

Mineirão e vaiado pela torcida após a derrota na semifinal.
Após a Copa de 2014, as equipes mudaram um pouco no Brasil. O jogo tornou-se mais tático no campeonato brasileiro. A qualidade dos jogos melhorou, o desempenho físico melhorou e os nossos jogadores, apesar de não brilharem tanto, estão num padrão mais elevado de maneira geral. No momento, em 2023, os maiores craques não são mais os brasileiros, mas, de qualquer forma, o jogo tático e físico tornou-se mais comum. De maneira geral, o futebol melhorou.
Mas, e o ensinamento sobre a queda do Fred? Qual é o sentido do futebol para as pessoas que o assistem? Um soldado aguerrido que não simula a batalha e encara o seu adversário até a morte, recebe uma medalha de honra. Nenhum soldado desertor é aplaudido em seu retorno. Ninguém é aplaudido por simular uma lesão. As regras da guerra se aplicam ao futebol e desabar quando se é tocado no ombro não é algo que se espera de um soldado. É parte do jogo no sentido de opção, pois sempre existe a opção da desonra, da deslealdade e da falsidade. Mas ninguém aplaude essas decisões e o nosso jogo ainda é preenchido por essas simulações.
Imagine o efeito cultural que teria um pedido de desculpas do jogador brasileiro dizendo que não havia ocorrido o penalti. O Brasil teria saído de cabeça erguida daquela Copa. Mas não foi isso que aconteceu.
Os jogadores representam a cultura, a cultura que representa o povo e o povo que se viu naquela queda não gostou do que viu.