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Por trás da razão habita um oceano

Posted on 16 de outubro de 202320 de outubro de 2023

A essa altura do campeonato, já deveríamos ter percebido que a razão não explica o fundamental. A razão é um alicerce para a casa, cuidando da parte estética e da ordenação dos aposentos. No entanto, deixar à razão a responsabilidade pela estrutura e pelos pilares que sustentam a casa pode ter sido um dos tropeços do nosso tempo.

A impressão que temos de nosso tempo deveria ser um retrospecto dos tempos que já se passaram, o passado de nossas vidas. Parece óbvio, mas o fluxo da história dos fatos e as correntes mais profundas que guiam as águas da consciência coletiva ainda permanecem encobertos e misteriosos para a quase completa maioria de nós. O fato é que o passado, hoje, é considerado notícia de ontem e, mesmo com a falta de jornais impressos, ele só serve para enrolar peixe.

A tradição, que em outros tempos guiou as novas atitudes ou, pelo menos, representou os degraus para o topo do terraço no qual só conseguimos chegar pelos ombros desses personagens que já foram, deixou de ser uma escada para tornar-se uma prisão: a prisão elástica da tradição que se expande à medida que é trilhada, mas nunca deixa de aprisionar o sujeito, pois ele sente que deve ao invés de que pode. Ou seja, dentro de uma tradição, o sujeito tem mais deveres do que direitos, mais obrigações do que diversão.

Podemos imaginar a alegria de um homem moderno, coletivamente moderno, que encontrou em si a liberdade dessa prisão do passado, que é inferior e indigna de continuidade. Mas, ao mesmo tempo, podemos também imaginar um homem angustiado, coletivamente angustiado, que já não sabe para onde ir dentro dessa suposta liberdade que foi conquistada pela deterioração de tudo que vinha da tradição.

Essa angústia coletiva é um efeito colateral, e seja qual for a situação em que nos encontrássemos, algum efeito colateral haveria de existir. Para muitos, trata-se apenas de um período em que as recompensas ainda estão por vir. Esse “por vir”, ligado à liberdade plena, tem seus defensores que acreditam ser um momento de adaptação à fluidez das novas instituições sociais. A sociedade líquida ainda não aprendeu a conter a água em suas próprias mãos, mas não morre de sede, pois tudo está incluído em tudo. Não há mais penalizações sociais. Não há mais hierarquias formais. Tudo pode acontecer, tudo é permitido, pois viver a liberdade é a grande sacada deste nosso tempo. Não há escadas, pois tudo é horizontal.

Porém, viver a liberdade que não foi saboreada pelos mais antigos nos sugere, por relação lógica, que em nosso tempo a plenitude foi conquistada à medida que naturalmente evoluímos. Algumas ideias do passado foram concretizadas em nossa vida e por meio do raciocínio, que nos libertou das amarras do misticismo e da hierarquia, agora podemos gozar da plenitude.

Entretanto, outros efeitos colaterais precisam ser incluídos nessa grande equação que é a humanidade. Nos tornamos seres racionais, sim. Mas, ao que parece, somos dotados de uma infeliz tendência a enxergar as coisas de forma reduzida, forçando tudo e todos a se encaixarem em forminhas bem pequenas. De alguma forma, não enxergamos a realidade de que o conteúdo ou transborda ou a forminha quebra.

A cultura da razão nos levou a abandonar o que apenas sentíamos. Tudo precisou passar pelos criteriosos testes da explicação racional. O que não foi aprovado nesse teste tratou de ser descartado. Um teste, uma forminha. Tratou-se de excluir uma porção de coisas da experiência humana sem medir os efeitos colaterais de tais exclusões.

O homem massa foi sendo pasteurizado aos poucos, sendo levado a acreditar que só a razão poderia levá-lo ao destino pleno da existência. Dessa forma, outra forma lógica, o que não era passível de explicação racional tornou-se descartável, e descartar tornou-se chique. Dessa maneira, com narizes empinados de óculos de intelectuais, ensinamentos milenares foram simplesmente excluídos do repertório comum, deixando, agora, o homem manco, coletivamente manco.

Nossa cultura, nossa religião exteriorizada em atos concretos, nada mais é do que o fruto de uma mentalidade vigente em determinado período. Entre rupturas e encontros, a degradação parece ser uma tendência, e o homem massa é a grande vitrine desses movimentos. Observar o homem massa é o mesmo que observar a mentalidade vigente em que estamos inseridos.

A razão é uma ideia que soa muito bem e é comercialmente muito poderosa. Porém, quando tudo é razão, o homem perde algo que só ele carrega dentro de si e não pode ser nem exposto nem tocado. Temos uma lama e uma consciência individual habita em algum lugar ainda desconhecido. Os movimentos sociais, por mais que tentem ser manipulados pelo raciocínio, tendem a ganhar força e tração de forma independente, guiados por forças que não compreendemos em sua totalidade. A realidade é muito mais complexa do que um movimento político, uma análise sobre os fatos históricos e a caminhada científica para explicar os fenômenos. A realidade não parece ser algo que possa ser explicado com histórias reduzidas apenas às explicações racionais.

Não chegamos à plenitude alguma. Não nos foi dada a liberdade de excluir a tradição, mesmo assim excluímos e o efeito colateral é o de amaldiçoar os mais jovens em um reinício, uma busca cansativa atrás de pegadas quase apagadas sobre o que foi feito e pensado anteriormente.

Agora vemos a lista de efeitos colaterais crescendo e ficamos perplexos com aquela sensação de que no passado não era assim. Vemos jovens viciados, imbecilizados, e a massa da cultura nos chamando para o declínio. Parece que não podemos nos diferenciar de forma coletiva de uma civilização pré-civilizada.

Nossa conectividade e toda a inteligência por trás dessa descoberta ou invenção ainda não nos levou a dar meia dúzia de passos. Todo esse aparato racional e teórico parece apenas ter nos distanciado ainda mais da plenitude que julgamos, racionalmente, saber onde mora.

O homem massa parece perdido em meio a inúmeras ruas e avenidas, sem saber o endereço do próprio destino. Ele precisará vagar por aí perguntando em cada esquina se alguém sabe onde fica uma casa assim e assado, com tais cores, de tal forma. Os mais sinceros poderão ser encontrados aos prantos como quem se perde dos pais, e não sabem o nome da rua em que moram.

Voltar à casa será uma nova jornada do herói, e parece que essas histórias individuais de heróis que se perdem sem querer ou são guiados por algo que a nossa razão jamais irá explicar, constróem o nosso futuro sem explicação racional.

Acredite, a razão não explica tudo.

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