Sem referências, sem saber para onde ir

A posição de um jogador já não serve mais como orientação para o trabalho desse atleta. Mesmo que ele seja um zagueiro, roubar a bola e passar para os armadores é só o começo. Ele precisa saber fazer gols, armar jogadas, correr, driblar… A posição não define mais nada, agora é uma questão de território. O campo é o território; o resto é trabalho duro.

O mesmo fenômeno acontece fora dos gramados. Ninguém mais tem a segurança de uma hierarquia bem definida. Ninguém mais nasce sabendo em que direção deve correr. Descobrir a direção é um dos maiores obstáculos hoje em dia; depois disso, é só comemorar. Claro, como todo gol, a comemoração só vem depois de muito trabalho, suor, às vezes sangue e lágrimas. A comemoração é um drama alegre sobre o trabalho duro. A comemoração de um gol é a conquista de território.

As instituições ruíram. Sem questionarmos os motivos dessa destruição e nem considerar se é bom ou ruim, elas ruíram. Casamentos, batizados, profissões, religiões, ritos de passagem e de saída… Nada do que costumava nos orientar permanece firme. É como se estivéssemos soltos dentro de uma tigela de gelatina, ainda líquida, que aos poucos vai se tornando mais firme, mas ainda assim, mesmo com esforço, podemos continuar nos movendo. Claro, cada vez mais desgastados.

No livro “O Admirável Mundo Novo”, existe uma droga chamada SOMA, que elimina toda e qualquer frustração das pessoas por 8 exatas horas. Sem efeitos colaterais, ela simplesmente fazia sumir qualquer tipo de sintoma derivado da frustração. Uma pessoa que continua a se mover em uma gelatina que se torna cada vez mais densa sofre, mas com o SOMA, não sente. Uma ilusão, claro. 

Temos muitos SOMAS espalhados por aí. Mesmo que ainda não seja canalizado em uma única droga, temos várias modalidades dela que somadas já estão trazendo esse efeito de eliminação das angústias. A vida sem referências claras é mais complexa do que se imaginava. As referências antigas parecem que tinham algum grau de benefício para a sociedade.

Quando observamos jogadores profissionais sob o olhar dessa fluidez, podemos observar os grandes atletas como Messi e Cristiano Ronaldo, que tiveram sucesso pleno em suas carreiras sendo completos. Mas eles chamam tanto a atenção, invocam tantos sentimentos de superação que acabamos esquecendo que, para existir um Messi, foram necessárias, talvez, mais de cem mil pessoas. Eles brilham tanto que acabamos esquecendo que dentro dessa indústria, muita gente fica pelo caminho com apenas um sonho, sem preparo nenhum para viver uma vida comum.

A máquina do futebol constrói estrelas brilhantes e cadentes. Os restos ficam espalhados pelo mundo reproduzindo as consequências de uma indústria tão grande que vive do sucesso de poucos, mas que entrega ao mundo o fracasso de uma multidão. 

Os obstáculos de um jogador atual são os mesmos de um cidadão comum. Não há mais posições claras, não há mais características únicas. Polivalência é a palavra nos gramados e fora deles. Uma pessoa sem preparo para a vida, que não conseguiu encontrar seu território em campo, terá as mesmas dificuldades fora dela. Ser pai, mãe, profissional, cuidar da saúde, da aparência, da educação, lidar com diferenças e frustrações, com a derrota. 

Os gols fora dos gramados são sutis, mas representam  um pouco de orientação para quem já não tem uma bússola para seguir caminhando.

Não basta mais apenas saber se defender. Não basta mais apenas saber atacar. É preciso funcionar dentro de um sistema.